terça-feira, 9 de setembro de 2014

O dinheiro não existe

<Como primeira coisa a dizer, aconselhamos que imprima esta carta para que a leias em papel. A experiência será outra>


Renato, lhe chamamos assim? Pois bem, como melhor sentires a vontade.
Que vontade? Viemos contar-te sobre uma vontade. Uma vontade coletiva. E lembrar que é tempo de fazer das vontades ações.

Kuna Libertária surge assim.

Gostariamos de iniciar falando do nome Renato, que vem do grego renatus e significa renascido. Talvez seja sobre renascimeto que estamos falando aqui.

Pessoas diferentes. Crescemos e nos desenvolvemos em contextos culturais completamente diferentes. Tu, um engenheiro civil, dono de uma construtora que ergue, compra e vende imóveis. Nós, um coletivo de artistas que toma a vida por um viés bastante simples, o corpo como ferramenta.

Sim, sim, sim, já sabemos. Nós também não gostaríamos que alguém entrasse na nossa casa. Muitos de nós não tem casa. E essa estava vazia. Um salão vazio há tempos.
E nossos corpos?! Cheios.
Nossas mentes e corações?! Cheios.
Na busca de um lugar para o transborde coletivo. Você tem (quase) toda a razão. Nossa ação pode, em certa medida, ofendê-lo. Ainda assim, tome algum tempo para acolher algumas palavras que trazemos.

Trabalhamos em desenvolver e intensificar as relações que constroem a dinâmica da nossa sociedade. Nenhum de nós quer ser dono de um lugar que vale tantos e não sabemos quantos mil reais. Nenhum de nós acredita na propriedade privada e não a queremos em nossas vidas. A base das nossas relações é alheia a interesses econômicos e não queremos por nenhum motivo travar uma briga contigo. Acontece que tampouco queremos abrir mão desse espaço para que ele volte a estar vazio e se converta em não mais que o espectro de um imóvel.

Não queremos mexer contigo. Não nos interessa nenhum aspecto da tua vida privada nem quantos imóveis registram tuas contas administrativas. Se ocupamos esse salão é por entendermos que ele não está cumprindo nenhuma função. Mas pode vir a cumprir. Veja só esse grande e potente espaço, Kuna - berço, simplesmente vazio e abandonado. E nós, todos nós (muito mais que nós) pequenos e potentes, simplesmente cheios e vitalizados, prontos a nascer.

A questão aqui é de coerência. Temos entre a Kuna e o Sr Renato todo um caminho já burocratizado e repertorializado de razões ou da falta delas. Hoje a questão é outra. Tentamos aqui diminuir a burocracia no nosso diálogo, para que a ação seja mais efetiva e construtiva em prol do espaço, desvencilhando-nos das charlatanices que resgatam uma forma empoeirada, digna nem mesmo de museu, para pensar as relacoes humanas. Co-e-rên-cia. Co-e-xis-tên-cia.

Um lugar de expressão. Livre expressão. Palco gratuito de vidas. Experiências de vida. Não uma morada exatamente, mas também. Muitos anseiam a vida que esse lugar pode gerar. Há a possibilidade de que o Senhor não intencione a estagnação desse espaço, mas por ter tantos outros a fazeres, esteja esquecido ou amortecido da importância desse lugar.
Distante de um julgamento alheio (já que se seguirmos o caminho barato das acusações, não temos por que seguir essa comunicação) queremos dizer-te que estamos despertos e queremos despertar esse espaço e consequentemente a vida publica e cultural que ele pode gerar. Cada qual com sua escolha e aqui, Renato, temos a possibilidade de uma escolha conjunta.  Escolhemos distribuir e te convidamos para que distribuas conosco.

A historia é essa: há três anos o Tablado Andaluz deixou o espaço. São três anos em que neste espaço já não circula nenhuma alma, a não ser a do abandono. Apesar da sombra do descaso, algo mágico aconteceu sábado, 6 de setembro. O renascimento, Renato, se deu cedo. Abriu-se passagem como se abrem as pernas de uma mulher pronta para parir. O feto maduro e sedento de mundo não machuca sua mãe, põe a cabeça para fora e clama mundo. Abriram-se as janelas, as grades. Limpou-se o corredor da entrada. Água na testa da criança. Apareceram plantas. Veias pulsam. Os ramos antes aleatórios são gentilmente acomodados nas paredes.

As bicicletas começam a entrar e sair. Entusiastas de um nascer. Adoradores de um novo ser. Ainda não era nem meio dia e o espaço explodia de energia. Os corpos, desde então, desde nunca, desde agora, não deixaram, não deixam, não deixarão de dançar ao ritmo de uma forte convicção que ruma em fertilizar o terreno morto, como as plantas que nascem no cimento. Um espaço transbordante de expressão artística, ou não. O ninho perfeito para nossas projeções.

Nesses dias o encontro com os vizinhos foi de pleno entusiasmo. As saudações de boas vindas contrastavam com a lembrança do vazio que o tablado deixou. A sintonia gerada entre a Kuna e a vizinhança é um fato que já irradia conexão, é algo natural que se constata.

A intensa dinâmica de revitalização foi interrompida ao grito de: -"invasores", proclamado por um vizinho descontente que, talvez por desconhecer-nos, decide noticiar ao Senhor nossa presença no espaço. Diante dessa situação nos sentimos na necessidade de entrar num paragrafo conceitual e fazer uma observação preliminar de vocabulário.

Quando há pessoas efetivamente usando o espaço e outros intencionam apropriar-se do uso, talvez se possa falar em invasão. Não é esse o caso aqui.
Ocupação é quando o espaço está ocioso e um grupo de pessoas entra para começar a fazer uso do mesmo. Os tipos e finalidades das ocupações abundam em possibilidades. O ato de ocupar espaços ociosos não é incomum, pelo contrário, existem ocupações artísticas e de moradia popular em diversas cidades no Brasil e em todos os cantos do mundo. Muitas delas podem tornar-se  potentes a servir, se não a todos, a muitos. Servir a fins sociais. Essa é a finalidade de ocupaçoes como pretende ser essa. Onde seu uso é maior que nós mesmos.

Distinções de verbetes podem servir para esclarecer ou criminalizar ações . O uso das palavras mascara o uso dos poderes. Cremos que a questão aqui transcende os termos.

FETO FEITO FATO É: Nossos impulsos criativos ultrapassam os obsoletos limites estruturais.

Vivemos um tempo em que descobrimos formas e ferramentas para transformar o idealizado em realidade. Deparamo-nos com o óbvio e não tragamos da garrafa de hipocrisia, engolindo-o sem
crítica. Analisamos o contexto em que vivemos e tomamos posições claras. Detectamos lugares sedentos e os ocupamos dando-lhes vida.

Ocupamos por convicção.

Ocupamos porque encontramos nessa ação, um canal de expressão, de desenvolvimento e uma possibilidade de caminhada com autonomia ante as utopias não somente nossas, se não de todos aqueles que intencionam em ter espaço e tempo para tornar autenticos seus meios de vida.

E isso tudo não como um objetivo a alcançar, se não como a própria forma de viver. Aqui, nesse espaço, com nosso tempo, criatividade, energia estamos construindo um estilo de vida que não é único, mas é um: outro. Estilo esse que convida a fazer da vida uma coisa inédita. Espontânea, autônoma e libertária. Sem depositar votos numa urna de futuros prometidos. O amanhã é agora e o operamos hoje.

Somos atores roteiristas de uma peça sem cartaz, sem diretor, sem acordos prévios que farseiem um espetáculo. Verdade nua e crua. É com isso que trabalhamos. E a verdade é tão louca que as vezes a apelidamos de ilusão, mas não, não nos confundamos, tratamos aqui de dimensões utópicas e fazeres concretos e reais. Bem vindo ao mundo, ser.

Queremos lhe mostrar nosso corpo e o quanto ele necessita desse espaço. Que os amigos começassem o som e que o corpo responda da forma mais genuína ao impulso gerado pelos instrumentos. Gostaríamos que entendesses o quão importante esse espaço pode ser para um montão de pessoas enquanto segues tua rotina (com todo o respeito) em outra cidade do estado pensando uma vez ou menos por dia nesse tablado abandonado. Se a reação defensiva que te surge é por medo de perder o imóvel, fica tranquilo. Te convidamos a dançar com a gente. Juntos, queremos nesse espaço a vida. Nem o seu abandono, nem seu enclausuramento em mais um predio; queremos ser como o vento penetrante que levantou a poeira de três anos quando abrimos a porta e as janelas.

Todos temos rosto. Seria importante cruzá-los. Declaramos a intenção de conversar pessoalmente contigo.

Abraço coletivo,
Saudação kuna,
Até breve! 

Nenhum comentário:

Postar um comentário